quinta-feira, agosto 30, 2012

"Matrix" revisitado: por que Jean Baudrillard não gostou do filme?

“’Matrix’ é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”, afirmou de forma mordaz o pensador francês Jean Baudrillard em uma das raras entrevistas sobre o filme dos irmãos Wachowski. Além dos irmãos terem se inspirado no livro “Simulacros e Simulações” do francês para o argumento de “Matrix”, convidaram-no para assessorar a continuação da trilogia. Baudrillard prontamente declinou do convite passando a raramente opinar sobre a relação do filme com seus conceitos filosóficos. Em uma das poucas entrevistas sobre o filme concedida ao "Le Nouvel Observateur" em 2003, Baudrillard criticou a ausência de ironia em "Matrix" e de ter tomado os princípios de "simulacro" e "simulação" a partir das categorias da realidade.

Certamente o filme “Matrix” tornou-se um clássico, não tanto pelas suas virtudes cinematográficas (na verdade, um típico blockbuster com todas as convenções do gênero), mas por ter se tornado uma síntese dos temas explorados em filmes como “Show de Truman”, “O Décimo Terceiro Andar”, “Ed TV” etc.: as crises decorrentes do apagamento das fronteiras entre o real e o virtual. Embora o filme faça uma alusão ao pensador francês Baudrillard, nas poucas entrevistas concedidas sobre “Matrix” ele demonstrou a estranheza de ver um conceito filosófico transposto para a realidade com muitos efeitos especiais. Para ele, o filme foi equivocado em aproximar o tema da noção do Mito da Caverna de Platão, além de conceber a simulação da matriz a partir das categorias da realidade.

Na entrevista que transcrevemos abaixo concedida ao Le Nouvel Observateur, Baudrillard afirma que o equívoco de Matrix foi retirar a ambiguidade do choque entre o virtual e o real e conceber a Matriz como uma tecnologia de onde é retirado o perigo e o negativo. Uma narrativa esquemática onde o deserto do real (sujo, decadente e perigoso) é substituído por uma tecnologia maquiavelicamente precisa, onde até as anomalias e revoltas já estariam previstas nas equações. Em outras palavras, sob a aparente crítica “Matrix” representaria um sintoma do fascínio cultural pelas tecnologias computacionais.


A HIPÓTESE DO SIMULACRO MERECIA MUITO MAIS DO QUE TORNAR-SE REAL
Aude Lancelin – 25/06/2003

Le Nouvel Observateur: Suas reflexões sobre a realidade e o virtual são algumas das principais referências usadas pelos criadores de “Matrix”. O primeiro episódio explicitamente faz alusão a você quando o espectador claramente vê a capa de seu livro “Simulacros e Simulações”. Você ficou surpreso com isso?

Os irmãos Wachowski
Jean Baudrillard: Certamente houve erros de interpretação, o que seja por isso que tenho sido hesitante até agora para falar sobre o filme “Matrix”. A equipe dos irmãos Wachowski contatou-me em vários momentos após o lançamento do primeiro episódio, a fim de me envolver com os seguintes, mas isso realmente não era concebível (risos). Basicamente, um mal-entendido semelhante ocorreu em 1980, quando um grupo de artistas de Nova York chamado “Simulacionistas”[1] me contatou. Eles tomaram a hipótese do virtual como um fato irrefutável e transformouo-a em um fantasma visível. Mas é precisamente isso, o fato de não podermos utilizar categorias do real a fim de discutir as características do virtual.

Nouvel Observateur: A conexão entre o filme e a sua visão desenvolvida, por exemplo, no livro “O Crime Perfeito”, é, no entanto, bastante impressionante. Ao evocar um deserto do real, esses humanos totalmente virtualizados e espectrais não são mais do que a reserva energética de objetos de pensamento ....

Jean Baudrillard: Sim, mas já houve outros filmes que tratam a indistinção crescente entre o real e o virtual: “Show de Truman”, “Minority Report”, ou mesmo “Mulholland Drive”, a obra-prima de David Lynch. O valor de “Matrix” é, principalmente, o de ser uma síntese de tudo isso. Mas a narrativa é muito crua e não verdadeiramente evoca o problema. Os personagens ou estão na matriz, isto é, no sistema digitalizado de coisas, ou estão radicalmente fora dele, tal como em Sião, a cidade da resistência. Mas seria interessante mostrar o que acontece quando esses dois mundos colidem. A parte mais constrangedora do filme é que o novo problema colocado pela simulação é confundido com o tratamento clássico platônico. Esta é uma falha grave. A ilusão radical do mundo é um problema enfrentado por todas as grandes culturas e que é resolvido através da arte e simbolização. O que nós inventamos a fim de dar conta desse mal estar é um real simulado, que doravante suplantará o real como a sua solução final, um universo virtual do qual tudo o que é perigoso e negativo foi expulso. E “Matrix” é, inegavelmente, parte disso. Tudo que pertence à ordem do sonho, utopia e ilusão é dada uma forma concreta, é realizado." Estamos na transparência sem cortes. “Matrix” é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir.

Nouvel Observateur: É também um filme que pretende denunciar alienação tecnicista e, ao mesmo tempo, demonstra inteiramente o fascínio exercido pelo universo digital e das imagens geradas por computador.

Para Baudrillard é notável a ausência de ironia
que permita aos espectadores irem
para além dos efeitos especiais
Jean Baudrillard: O que é notável sobre “Matrix Reloaded” é a ausência de um lampejo de ironia que permita aos telespectadores transformar este gigantesco efeito especial em sua cabeça. Não há uma seqüência que seja o “punctum”, sobre qual Roland Barthes escreveu, esta marca impressionante que lhe traz cara-a-cara com uma imagem verdadeira. Além disso, isso é o que torna o filme um sintoma revelador do fetiche real em torno deste universo de tecnologias de tela no qual não há mais distinção entre o real e o imaginário. Podemos considerar “Matrix” um objeto extravagante, ao mesmo tempo sincero e perverso, onde não há nem um aqui nem lá. O pseudo-Freud que fala na conclusão do filme coloca muito bem: em um determinado momento nós reprogramamos a matriz a fim de integrar anomalias na equação. E você e as resistências seria uma parte delas. Dessa maneira estamos, ao que parece, dentro de um circuito virtual total sem um exterior. Aqui, novamente estou em desacordo teórico (risos). “Matrix” pinta a imagem de uma superpotência monopolista, como vemos hoje, e então colabora em sua refração. Basicamente, a sua difusão em escala mundial é conivente com o próprio filme. Sobre este ponto, vale a pena lembrar Marshall McLuhan: o meio é a mensagem. A mensagem de “Matrix” é a sua própria difusão por meio de uma contaminação incontrolável.

Nouvel Observateur: É um pouco chocante ver que, doravante, todos os sucessos de marketing norte-americanos, de “Matrix” ao novo álbum de Madonna, são apresentados como críticas ao sistema que maciçamente os promove.

Jean Baudrillard: Isso é exatamente o que faz com que nosso tempo seja tão opressivo. O sistema produz uma negatividade em trompe-l'oeil, que é integrado em produtos do espetáculo, assim como a obsolescência é construído em produtos industriais. É a forma mais eficiente de incorporação de todas as alternativas genuínas. Não há um ponto Omega mais externo ou meios disponíveis antagônicos para analisar o mundo. Não há nada mais do que uma adesão fascinada. Deve-se entender, no entanto, que quanto mais se aproxima de um sistema de perfeição mais nos aproximamos do acidente total. É uma forma de ironia objetivo estipulando que nada aconteceu. O 11 de setembro foi um exemplo disso. O terrorismo não é um poder alternativo, não é nada, exceto a metáfora deste retorno quase suicida do poder ocidental sobre si mesmo. Isso foi o que eu disse na época e foi amplamente criticado. Não se trata de ser niilista ou pessimista em face de tudo isso. O sistema, o virtual, a matriz - tudo isso talvez retorne à lata de lixo da História. Enquanto a reversibilidade, desafio e sedução são indestrutíveis.

Comentário

De Hollywood ao meios intelectuais e 
acadêmicos, as ideias de Baudrillard foram 
interpretadas por leituras esquemáticas a 
partir da noção ideológica de "falsa consciência"

A estranheza de Baudrillard em ver seus conceitos de simulacro e simulação traduzidos por meio de efeitos especiais em uma típica narrativa maniqueísta de luta entre o bem e o mal, a realidade e o virtual, não se refere apenas uma interpretação equivocada de Hollywood e dos irmãos Wachowski. Os próprios círculos intelectuais e acadêmicos também acabaram fazendo uma leitura sobre Baudrillard semelhante ao partir da tradicional crítica da ideologia como falsa consciência.

É como se tudo fosse uma estória narrada com a seguinte sinopse: era uma vez o virtuoso real que, de repente, foi corrompido pela ambição humana traduzida por uma sofisticada tecnologia que criou uma representação ideológica do mundo que subjuga os homens bons sedentos pela Verdade e Realidade.

Essa leitura esquemática de Baudrillard não compreende o ponto crucial no pensamento do francês expresso na entrevista acima: a realidade, desde o seu início, já foi seduzida pela ilusão através da ironia, reversibilidade e sedução. Como vimos em postagem anterior (veja links abaixo) é o postulado gnóstico de que o mundo físico é corrompido desde sua criação, seduzido pelo Mal tomado aqui em um sentido mais ontológico do que moral.

O que Baudrillard qualificava como “estratégia fatal” era o fato de a realidade ser irônica e desafiar todos os propósitos humanos de controle, assepsia e transparência. Chamava essa estratégia irônica de “reversibiliade”: o destino de cada ação no sentido do Bem (progresso, transparência, desenvolvimento, funcionalidade, racionalidade etc.) resulta em uma espécie de efeito entrópico: dissolução, regressão, opacidade. A tecnologia que de tão sofisticada e complexa converte-se em gadgets inúteis; a assepsia e o ideal de brancura total produz a infecção hospitalar; o sistema econômico que de tanta racionalidade resulta em um gigantesco potlach. Dessa forma, para cada ato bom produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante.

Por isso, como diz Baudrillard na entrevista, todas as culturas se defrontaram com a suspeita da ilusão radical do mundo e tentaram elaborá-la por meio das artes e simbologia. A cultura tecnológica, ao contrário, procurar dar conta desse mal com a simulação do real, criar uma ilusão que supere outra ilusão por meio da tentativa de eliminar a negatividade e o mal através da precisão, racionalidade e assepsia.

Por isso, Baudrillard criticava a falta de ambiguidade e ironia à trilogia “Matrix”: a matriz é perfeita demais e o real é excessivamente desértico. Tudo preto/branco, binário, tal qual a lógica do sistema contra a qual a narrativa tenta rebelar-se.





[1] Foi talvez Peter Halley, mais do que qualquer outro pintor americano “Simulacionista”, que triunfou a conceituação de Baudrillard de hiper-realidade na arte. E, como ele observa com ironia, Baudrillard acabou com as esperanças de Halley ao afastar-se dele com críticas. Mas não foi apenas os pintores “Simulacionistas” que mereceram a crítica. Como Paul Hegarty disse em uma recente entrevista com Baudrillard (Abril de 2003, em seu livro Jean Baudrillard: Live Theory, London: Continuum, 2004): "os últimos foram os ‘artistas simbióticos’. Eles continuaram insistindo, dizendo: 'mas você deve amar o que estamos fazendo’. Baudrillard disse: 'espera aí, isso não é aceitável".

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